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Caetano Veloso segue arejando a MPB no CD 'Abraçaço'


“A bossa nova é foda”, sentencia Caetano Veloso na incisiva faixa que abre “Abraçaço”, seu 49º disco, lançado pela gravadora Universal Music. Completando a trilogia iniciada com ‘Cê’ (2006), seguida de ‘Zii e zie’ (2009), Caetano volta à áspera ambiência musical criada juntamente com Pedro Sá (guitarrista), Marcelo Callado (baterista) e Ricardo Dias Gomes (baixista) – a BandaCê – para restabelecer o experimentalismo dos últimos trabalhos, incluindo o (já) icônico álbum ‘Recanto’ (2011), de Gal Costa.  No jogo de palavras e charadas que constituem a ‘A bossa nova é foda’, Caetano provoca o ouvinte em versos como “diz que quando chegares aqui/ que é um dom que muito homem não tem/ que é influência do jazz", enquanto entroniza (uma vez mais) “o bruxo de Juazeiro”, João Gilberto, criador da famosa batida de violão que mudou timbres e rumos da música popular brasileira. Exercitando sua aptidão para a controvérsia, coloca no mesmo saco os célebres Vinicius de Moraes (1913  1980), Carlos Lyra e Machado de Assis (1839  1908), ao lado de Anderson Silva e outros minotauros contemporâneos alçados à condição de estrelas dentro e fora do ringues.
Com a envolvente linha de baixo, ‘Um abraçaço’ pega o ouvinte de primeira e seria facilmente eleita a melhor faixa do disco (certamente é a mais radiofônica), caso o santamarense não tivesse se voltado para o exercício da solidão em ‘Estou triste’, melancólico lamento em que tudo dói. Depurando o tema que rendeu belezas como ‘Etc.’ (1989) e ‘Luto’ (1998), Caetano enquadra seu recanto escuro: “E o lugar mais frio do Rio/ é o meu quarto”. Mas o íntimo espaço também tem suas horas luminosas, como entregam os versos de ‘Quando o galo cantou’: “eu pensava que nós/ não nos desgrudaríamos mais/ o que fiz para merecer essa paz”. O deslumbramento ante a presença do outro continua em ‘Quero ser justo’, da escancarada declaração: “Eu vi você: uma das coisas mais lindas da natureza/ E da civilização”. O prazer continua em ‘Vinco’, cujo arranjo ralentado prejudica a boa letra na qual o compositor dialoga com ‘Elegia’ (Augusto de Campos/ Péricles Cavalcanti) ao tratar o corpo da musa como território (a América) a ser conquistado: “Finco o estandarte em teu terreno tenro”, diz.
Os vieses da vida real se impõem na veemência de ‘Funk melódico’, cuja fonte (o batidão do funk carioca) é a mesma de ‘Miami maculelê’. Aqui, Caetano evoca a mulher indigesta de Noel Rosa (1910 – 1937) e lhe atira um tijolaço sonoro. Briga das boas que já rendeu as enfezadas e ótimas ‘Não enche’ (1997) e ‘Odeio’ (2006). Há espaço para o maracatu pontuado pela guitarra de ‘O império da lei’, mantra cuja repetição parece acontecer para que o próprio artista acredite que a lei realmente chegará ao Pará. A importância política de ‘Um comunista’, sobre o conterrâneo Carlos Manghella, não disfarça a monotonia do arranjo em seus intermináveis 8 min. Cara do mundo, Caetano decalca as mudanças linguísticas provocadas pela internet em ‘Parabéns’. “Tudo mega bom, giga bom, terá bom/ Uma alegria excelsa/ pra você/ no paraíso astral que começa/ hehe”, diz o e-mail de aniversário enviado por Mauro Lima para Caetano, que o musicou. O amor homossexual transborda nos versos de ‘Gayana’, composição do tropicalista de primeira hora, Rogério Duarte: “Eu não vou mais me calar/ Eu não vou mais me esconder”. Mas com seu monótono arranjo, ‘Gayana’ nunca chega realmente arrebatar.
Assim o baiano encerra a benfazeja trilogia que arejou sua (intensa) produção autoral. Com a alma saturada de poesia, soul e rock’n’roll, Caetano segue, cabeça a prumo, apontando novos rumos possíveis para essa apaixonante forma de arte brasileira, a música popular. Ele merece um abraçaço. 

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