“Quando eu não
puder pisar mais na Avenida/ Quando as minhas pernas não puderem aguentar/
Levar meu corpo junto com meu samba/ O meu anel de bamba/ Entrego a quem mereça
usar”. Ao lançar seu primeiro disco, ‘A voz do samba’, em 1975, Alcione viu os
versos melancólicos de ‘Não deixe o samba morrer’ (Edson Conceição/ Aloísio
Silva) ganharem o país, tornando-se o primeiro sucesso da jovem cantora.
Radicada no Rio de
Janeiro desde 1967, a maranhense cantava em casas noturnas que marcaram época
nas noites cariocas. Nestas apresentações, seu abrangente repertório incluía
diferentes gêneros da música brasileira, além de canções francesas, italianas e
norte-americanas também presentes no rádio. Enquanto isso, o samba conquistava
novos espaços na década de 1970. Em 1974, Clara Nunes viu sua carreira
firmar-se nacionalmente com o disco ‘Alvorecer’, do sucesso de ‘Conto de areia’
(Romildo Bastos/ Toninho Nascimento). No mesmo ano, Beth Carvalho obteve seu
primeiro êxito como sambista com ‘1.800 colinas’ (Gracia do Salgueiro), faixa
do LP ‘Pra seu governo’. Neste contexto, Roberto Menescal, diretor artístico da
gravadora Philips, viu em Alcione a intérprete que a gravadora precisava. ‘A
voz do samba’ anunciava de maneira direta a entrada em cena de uma nova
sambista.
O passeio pelo
gênero começa com ‘História de pescador’, partido-alto de Candeia. A faixa é o
veículo perfeito para Alcione mostrar a espontaneidade e musicalidade que se
tornariam marcantes em suas gravações. O compositor portelense ainda assina
‘Batuque feiticeiro’, “um samba com viola e com pandeiro”. ‘O surdo’ (Totonho/
Paulinho Rezende) é outro destaque do repertório. O registro inaugura a longeva
e bem-sucedida relação entre a cantora e os compositores do pungente samba, que
renderia outros belos momentos como ‘Lá vem você’ (1976), ‘Morte de um poeta’
(1976) e ‘Seu rio, meu mar’ (1978), entre outros. Paulinho Rezende é coautor
dos sucessos 'Menino sem juízo' (com Chico Roque, 1979), 'A loba' (com Juninho
Peralva, 2001) e 'Meu ébano' (com Nenéo, 2005). ‘Acorda que eu quero ver’,
samba de Carlos Dafé, surge cheio de suingue no arranjo do grupo Senzala,
origem da Banda Black Rio. Além de Menescal, o disco contou com a produção de
Roberto Santana, que apresentou à Marrom compositores baianos como Edil Pacheco
e Nelson Rufino, autores do samba de roda ‘Aruandê’. Composição dos
soteropolitanos Batatinha e Ederaldo Gentil, a tristonha ‘Espera’ tem sua
beleza realçada pela suave interpretação de Alcione.
O lado B da
bolacha apresenta o arrasa quarteirão ‘Não deixe o samba morrer’. Sucesso
instantâneo, o samba ficou mais de 20 semanas entre as mais tocadas nas rádios
brasileiras, consolidando-se como um clássico da música popular brasileira e
presença obrigatória no repertório de Alcione. Apresentando uma sonoridade
clássica, pré-Cacique de Ramos e Fundo de Quintal, a bela gravação inclui
violões e flauta, com arranjo assinado por Zé Menezes. As raízes maranhenses,
tão caras à artista, estão representadas por ‘Etelvina minha nega’, samba
composto pelo pai de Alcione, o maestro João Carlos. ‘É amor... Deixa doer’
(Dom Mita) prenuncia o romantismo que estaria presente em tantos futuros
sucessos. ‘Todo mundo quer’, samba gaiato de Ismael Silva, integra o repertório
com leveza e bom humor. ‘Até o dia de São Nunca’ (Edil Pacheco/ Paulo Diniz)
mantém o clima irreverente. “O samba vai vencer/ Quando o povo perceber/ Que é
o dono da jogada...” anuncia Alcione em ‘Samba em paz’, do baiano Caetano
Veloso, unido no pot-pourri a ‘A voz do morro’, clássico do carioca Zé Keti, de
cujos versos saiu o título do disco.
‘A voz do samba’
apresentou uma cantora que foi além de um rótulo que poderia ser limitador. Ao
longo de sua vitoriosa carreira, a Marrom cantou o que teve vontade sem,
contudo, se afastar do gênero que lhe deu os primeiros sucessos. Cinquenta anos
depois, Alcione, uma das grandes vozes da música popular brasileira, mantém o
seu anel de bamba.
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