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Célia enxuga romantismo derramado do repertório do "rei"



No texto de apresentação de ‘Outros românticos’, primeiro CD de Célia para a gravadora Joia Moderna, o DJ Zé Pedro aponta a presença de composições de Roberto Carlos e Erasmo Carlos no início da carreira da cantora paulistana.  Célia gravou a desconhecida ‘Nasci numa manhã de carnaval’ (Roberto Carlos/ Erasmo Carlos) em um compacto em 1971 e seu segundo disco, em 1972, trazia ‘A hora é essa’ e o futuro clássico ‘Detalhes’.
Com elegância e delicadeza, Célia agora enxuga o romantismo derramado das canções gravadas pelo ‘rei’ nos anos 1970, quando Roberto ainda registrava com mais frequência outros compositores tão sentimentais quanto ele. Produzido por Thiago Marques Luiz, ‘Outros Românticos’ traz dez composições não assinadas por Roberto, com arranjos do pianista Alex Vianna e do violonista Rovilson Pascoal.
Cantora personalíssima, Célia faz soar cada sílaba com inteligência e exatidão, evidenciando sua qualidade vocal em faixas como ‘Abandono’ (Ivor Lancelotti, 1979) e ‘Preciso lhe encontrar’ (Demétrius, 1970). A tristíssima composição de Ivor que abre o álbum ganha interpretação tão bonita que os 2min49 de duração da faixa parecem poucos, deixando a sensação de que os versos mereciam uma segunda passada.
Mesmo em faixas prejudicadas por arranjos equivocados como o de ‘Jogo de Damas’ (Isolda/ Milton Carlos, 1974), a cantora se sai bem. O primeiro sucesso de Isolda na voz de Roberto tem suas tintas (muito) dramáticas carregadas por um desnecessário arranjo que emula o tango argentino. Já ‘Atitudes’ (Getúlio Cortes, 1973) soa datada.
A pegada bossa-novística de ‘Quero ver você de perto’ (Benito Di Paula, 1974) distancia a faixa do registro grandiloquente feito por Roberto, enquanto a beleza melódica de ‘Sonho lindo’ (Maurício Duboc/ Carlos Colla, 1973) sobrepõe-se ao arranjo apenas correto de violão (Rovilson Pascoal) e piano (Alex Vianna).
A conhecida ‘Nosso amor’ (Mauro Motta/ Eduardo Ribeiro, 1977) e a obscura ‘Uma palavra amiga’ (Getúlio Cortes, 1970) são igualmente valorizadas, assim como ‘Vivendo por viver’ (Marcio Greyck/ Cobel, 1978) é veículo para mais uma notável interpretação de Célia, muito à vontade com a desesperançada letra, sem precisar lançar mão de exageros.
‘Se eu partir’ (Fred Jorge, 1971) é desfecho perfeito para o repertório que vai direito ao inconsciente do ouvinte, revivendo um tempo de canções despudoradamente sentimentais. ‘Outros românticos’ deveria ser ouvido com atenção por sereias pseudo-românticas da contemporaneidade. Injustamente esquecida pelas gravadoras, Célia é mais uma grande cantora que volta a brilhar através da Joia Moderna.

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