Pular para o conteúdo principal

Novas joias do ourives Buarque


Nas lojas desde o dia 22 de julho, ‘Chico’ (Biscoito Fino), o novo álbum de Buarque, suscitou críticas unanimes. Resenhas, as mais variadas, seguiram caminhos semelhantes apontando a falta de “arrebatamento” do disco e uma insuspeita obrigação de eleger uma “obra-prima”, no caso, ‘Sinhá’ (Chico Buarque/ João Bosco). Os (merecidos) elogios às novas canções parecem trazer sombras de consternação: acostumados por décadas de alta produtividade – e qualidade absurda – da obra de Chico, os fãs ainda rasgam o invólucro do CD esperando encontrar uma nova ‘construção’, um ‘samba do grande amor’ com ‘todo o sentimento’.
Quarenta anos depois da seminal ‘Canção dos olhos’, cinco após o CD ‘Carioca’, Chico entrega joias tão preciosas quanto sutis: há que se prestar atenção em cada uma delas, sem a pressa comum aos nossos dias, para assim desvendar cada reentrância, cada variação de tonalidades (como acontece com o colorido encarte sob a capa em preto e branco) de músicas como ‘Rubato’ (Chico Buarque/ Jorge Helder) e ‘Barafunda’ (Chico Buarque) – esta uma clara referência a ‘Leite derramado’, livro lançado por Buarque escritor em 2009.
O tempo da delicadeza marca faixas como a sapiente ‘Querido diário’ (Chico Buarque) e a sentida ‘Sem você 2’ (Chico Buarque) – nobres canções da linhagem buarqueana capazes de causar alguma estranheza em ouvidos mais afoitos.
O homem que amou de todas as maneiras reaparece sereno – e sedutor –, constatando sutis diferenças com a nova musa (“Meu tempo é curto e o tempo dela sobra/ Meu cabelo é cinza, o dela é cor de abóbora”) no blues ‘Essa pequena’ (Chico Buarque). Chico repete o correto dueto com a novata Thaís Gulin em ‘Se eu soubesse’ (Chico Buarque), charmosa canção gravada por eles no segundo disco de moça.
A valsa brasileira ‘Nina’ traz em si sabores russos destacados pelo acordeom de Marcos Nimrichter. “Nina anseia por me conhecer em breve/ Me levar para a noite de Moscou/ Sempre que esta valsa toca/ Fecho os olhos, bebo alguma vodca/ E vou...”, entregam os versos cantados com leveza.
Em uma das melhores faixas do disco, ‘Tipo um baião’, Chico brinca com o andamento da canção. Ao retratar uma desilusão amorosa, ouvem-se ecos distantes da perfeita ‘Paratodos’ (Chico Buarque, 1993). Irresistível. Gravada originalmente por Diogo Nogueira, a malandragem ambígua de ‘Sou eu’ (Chico Buarque/ Ivan Lins) ressurge mais elegante, com a participação especial de Wilson das Neves.
Encerrando o disco, ‘Sinhá’ mereceu louvores pela engenhosa e sensível letra do compositor que conta a história de um escravo em vias de ser castigado por olhar para a sinhá. A belíssima melodia de João Bosco – que acompanha Chico na faixa – evoca o lamento africano, criando um momento realmente primoroso.
E assim, um de nossos melhores compositores segue registrando magnificamente as impressões colhidas ao longo dos seus 67 anos de vida. Tal como na canção-homenagem feita por Caetano Veloso, Chico Buarque “brilha único, indivíduo, maravilha sem igual. Já tem coragem de saber que é imortal”. Ele continua iluminando da música popular brasileira.

Comentários

Buarque é sempre uma excelência. "Pedra de rumo" na Música Popular Brasileira.

Postagens mais visitadas deste blog

A voz do samba - O primeiro disco de Alcione

  “Quando eu não puder pisar mais na Avenida/ Quando as minhas pernas não puderem aguentar/ Levar meu corpo junto com meu samba/ O meu anel de bamba/ Entrego a quem mereça usar”. Ao lançar seu primeiro disco, ‘A voz do samba’, em 1975, Alcione viu os versos melancólicos de ‘Não deixe o samba morrer’ (Edson Conceição/ Aloísio Silva) ganharem o país, tornando-se o primeiro sucesso da jovem cantora. Radicada no Rio de Janeiro desde 1967, a maranhense cantava em casas noturnas que marcaram época nas noites cariocas. Nestas apresentações, seu abrangente repertório incluía diferentes gêneros da música brasileira, além de canções francesas, italianas e norte-americanas também presentes no rádio. Enquanto isso, o samba conquistava novos espaços na década de 1970. Em 1974, Clara Nunes viu sua carreira firmar-se nacionalmente com o disco ‘Alvorecer’, do sucesso de ‘Conto de areia’ (Romildo Bastos/ Toninho Nascimento). No mesmo ano, Beth Carvalho obteve seu primeiro êxito como sambista com ‘1...

Galeria do Amor 50 anos – Timóteo fora do armário (ou quase)

  Agnaldo Timóteo lançou o disco ‘Galeria do amor’ em 1975. Em pleno regime militar, o ídolo popular, conhecido por sua voz grandiloquente e seu temperamento explosivo, ousou ao compor e cantar a balada sobre “um lugar de emoções diferentes/ Onde a gente que é gente/ Se entende/ Onde pode se amar livremente”. A canção, que se tornaria um sucesso nacional, foi inspirada na famosa Galeria Alaska, antigo ponto de encontro dos homossexuais na Zona Sul carioca – o que passaria despercebido por boa parte de seu público conservador. O mineiro de Caratinga já havia suscitado a temática gay no disco ‘Obrigado, querida’, de 1967. A romântica ‘Meu grito’, feita por Roberto Carlos para a sua futura mulher, Nice, ganhou outras conotações na voz poderosa de Timóteo. “Ai que vontade de gritar seu nome, bem alto no infinito (...), só falo bem baixinho e não conto pra ninguém/ pra ninguém saber seu nome, eu grito só ‘meu bem'”, canta Agnaldo, que nunca assumiria sua suposta homossexualidade. ...

50 anos de Claridade

Clara Nunes (1942 – 1983) viu sua carreira deslanchar na década de 1970, quando trocou os boleros e um romantismo acentuado pela cadência bonita do samba, uma mudança idealizada pelo radialista e produtor musical Adelzon Alves. Depois do sucesso do LP ‘Alvorecer’, de 1974, impulsionado pelas faixas ‘Menino deus’ (Mauro Duarte/ Paulo César Pinheiro), ‘Alvorecer’ (Délcio Carvalho/ Ivone Lara) e ‘Conto de areia’ (Romildo/ Toninho Nascimento), a cantora mineira reafirmou sua consagração popular com o álbum ‘Claridade’. Lançado em 1975, este disco vendeu 600 mil cópias, um feito excepcional para um disco de samba, para uma cantora e, sobretudo, para um disco de samba de uma cantora. Traço marcante na trajetória artística e na vida de Clara Nunes, o sincretismo religioso está presente nas faixas ‘O mar serenou’ (Candeia) e ‘A deusa dos orixás’, do pernambucano Romildo e do paraense Toninho Nascimento, os mesmos autores de ‘Conto de areia’. Eles frequentavam o célebre programa no qual Adelzon...