Elza Soares traz à luz seus recantos escuros, impregnados de sangue e
suor, prazeres e lágrimas no urgente ‘A mulher do fim do mundo’ (Circus/ Natura Musical), seu 34º disco, o primeiro inteiramente de inéditas em mais de seis
décadas de carreira. Conduzida pelo músico e produtor carioca residente em São
Paulo, Guilherme Kastrup, a mulata desfila seu enredo entre estranhezas sonoras
de uma das turmas da fervilhante cena musical paulistana contemporânea. O
resultado é impactante. Linhas de baixo (Marcelo Cabral) bem marcadas,
guitarras rascantes (Kiko Dinucci e Rodrigo Campos), percussão (Felipe Roseno)
e bateria (Kastrup) sem enfeites formam a áspera base das faixas, algumas delas
adensadas por dramáticos naipes de cordas e de metais. No entanto, é a voz
solitária da mulher do fim do mundo que se ouve em ‘Coração do mar’, que traz versos
de Oswald Andrade musicados por José Miguel Wisnik. Um navio “humano, quente,
negreiro do mangue” que aporta na canção-título, composta por Romulo Fróes e
Alice Coutinho. ‘A mulher do fim do mundo’ é samba torto que retrata a vida da própria
Elza. “Me deixem cantar até o fim”, clama a protagonista na doída faixa. Criada
numa favela em Água Santa, no subúrbio do Rio de Janeiro, de onde saiu casada
aos 12 anos de idade, Elza conhece de cor as dores das Marias, da Penha carioca
ou da Vila Matilde paulistana. Por isso a alta voltagem alcançada em ‘Maria de
Vila Matilde’ (Douglas Germano), que cansou de apanhar e ameaça seu amante-algoz
com água fervendo e cachorro atiçado, é um dos pontos altos do disco, de arrepiar.
‘Luz vermelha’ (Kiko Dinucci/ Clima) mantém o ar suspenso, impregnado da
crueldade cotidiana da periferia “no meio-dia, no meio do tiroteio”, quando não
tem ninguém na rua, no açougue ou na praça. Barra pesada que se alivia no sexo.
Transformada em loba, Elza Soares bota ‘Pra fuder’ (Kiko Dinucci) num samba
célere, quase rap. Ainda transitando no (sub)mundo dos instintos, nossa heroína
canta a história de ‘Benedita’ (Celso Sim/ Pepê Mata Machado/ Joana Barossi/
Fernanda Diamant), travesti que "leva um cartucho na teta, abre a navalha na boca e
tem uma dupla caceta”, sem falsos moralismos. Tudo beleza, como na saudação dos
interlocutores de ‘Firmeza?!’, que Elza divide com o autor, Rodrigo Campos e
parece recontar o clássico encontro eternizado em ‘Sinal fechado’ (Paulinho da
Viola), sob a ótica de quem nasceu nas quebradas dessa vida. O vocabulário das
ruas soa natural na voz curtida desta senhora cantora. “Daria minha vida/ a
quem me desse o tempo/ Soprava nesse vento/ a minha despedida”, em ‘Dança’
(Cacá Machado/ Romulo Fróes), espécie de tango apocalíptico. Almas perdidas
navegam ‘O canal’ (Rodrigo Campos) iluminado pelo farol de Alexandre, o Grande,
num tom de lamento. O existencialismo de ‘Solto’ (Marcel Cabral/ Clima) remete
a ‘Madre Deus’ (Caetano Veloso/ José Miguel Wisnik): “Solto/ quase outro corpo/
O meu corpo caminha sozinho/ Sem você/ Sem nada perto”. Os ruídos intensos de ‘Comigo’
(Romulo Fróes/ Alberto Tassirani) dão lugar à voz da mulher do fim do mundo,
romeira, a desfiar sua ladainha. No silêncio, ao longe, ainda é possível
ouvi-la, perseverando, negando-se a se entregar à finitude. Retratando a ousada
e desafiadora persistência de Elza Soares, ‘A mulher do fim do mundo’ é, até o
momento, o grande disco de 2015.
“Quando eu não puder pisar mais na Avenida/ Quando as minhas pernas não puderem aguentar/ Levar meu corpo junto com meu samba/ O meu anel de bamba/ Entrego a quem mereça usar”. Ao lançar seu primeiro disco, ‘A voz do samba’, em 1975, Alcione viu os versos melancólicos de ‘Não deixe o samba morrer’ (Edson Conceição/ Aloísio Silva) ganharem o país, tornando-se o primeiro sucesso da jovem cantora. Radicada no Rio de Janeiro desde 1967, a maranhense cantava em casas noturnas que marcaram época nas noites cariocas. Nestas apresentações, seu abrangente repertório incluía diferentes gêneros da música brasileira, além de canções francesas, italianas e norte-americanas também presentes no rádio. Enquanto isso, o samba conquistava novos espaços na década de 1970. Em 1974, Clara Nunes viu sua carreira firmar-se nacionalmente com o disco ‘Alvorecer’, do sucesso de ‘Conto de areia’ (Romildo Bastos/ Toninho Nascimento). No mesmo ano, Beth Carvalho obteve seu primeiro êxito como sambista com ...
Comentários