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'Delírio', de Roberta Sá, promete e não cumpre

Ao largo das ousadias musicais de veteranas como Gal Costa e Elza Soares, Roberta Sá está de volta ao samba em ‘Delírio’ (MP,B Discos/ Som Livre), quinto álbum da discografia inaugurada oficialmente com ‘Braseiro’, em 2005, ainda hoje o seu melhor disco. ‘Braseiro’ tinha uma leveza descompromissada que Roberta foi perdendo gradativamente ao longo da carreira. A bela potiguar foi gostando de brincar de diva da canção, posto que, naturalmente, não se ocupa apenas por vontade própria. É esta cantora dada a interpretações pretensiosas que se ouve em ‘Delírio’. Produzido com apuro por Rodrigo Campello que a acompanha desde o primeiro lançamento, o novo trabalho não alça voo. Roberta canta as dez canções do mesmo jeito cálido e afetado que (muito) pouco se assemelha ao ambiente envolvente e (quase sempre) buliçoso do samba. Seja na composição de Adriana Calcanhotto, ‘Me erra’ (2015), ou numa admirável parceria de Baden Powell (1937 – 2000) e Paulo César Pinheiro, ‘Última forma’, lançada pela divina Elizeth Cardoso (1920- 1990) em 1972, não há mudanças climáticas. A temperatura permanece morna tal como o gênero musical cabo-verdiano lembrado no arranjo de ‘Meu novo Ilê’ (Quito Ribeiro/ Moreno Veloso), boa faixa que abre o disco – e que dá o tom do que vem a seguir. Primeira das três músicas do compositor baiano Cézar Mendes presentes no álbum, a bela ‘Um só lugar’ (parceira com Tom Veloso) também carece de ânimo interpretativo. Faixa com jeito de samba da antiga, ‘Não posso esconder o que o amor me faz’ (Cézar Mendes/ Capinam) soa melhor.  Valorizado pela presença de Chico Buarque, ‘Se for pra mentir’ (Cézar Mendes/ Arnaldo Antunes) é elegante, quase bossa, e mantém ‘Delírio’ em fogo brando, assim como ‘Feito carnaval’ (Rodrigo Maranhão).  Outro convidado especial é Martinho da Vila, que participa da sua ‘Amanhã é sábado’, composição que traz a ótica feminina de um casal ligado ao samba, que soa apenas correta. Samba-canção transformado em fado, ‘Covardia’ (Ataulfo Alves/ Mário Lago) traz a voz do cantor português António Azambujo e a guitarra portuguesa de Bernardo Couto em novo momento de (bela) calmaria. Únicos sopros de vivacidade, ‘Delírio’ (Rafael Rocha) e ‘Boca em boca’ (Roberta Sá/ Xande de Pilares) se destacam no álbum que não é ruim, mas que promete o que não entrega desde a capa, em que a cantora surge em pose estudadamente sensual. Se quiser tentar ser realmente diva, já passa da hora de Roberta Sá descer do salto e se deixar levar pela música, sem medo nem esperança, como se o mundo fosse acabar.

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