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Rosa em preto e branco

Composta num breve espaço de tempo, a extraordinária obra de Noel Rosa (1920 – 1937) continua a seduzir cantoras de variadas gerações e estilos. De Aracy de Almeida (1914 -1988) e Marília Batista (1918 – 1990), intérpretes admiradas pelo próprio compositor carioca, a Maria Bethânia e Gal Costa, cantoras modernas que registraram músicas do poeta da Vila em diferentes fases de suas carreiras. Cronista de costumes de um tempo em que a malandragem ainda era cordial, Noel possuía uma visão peculiar dos acontecimentos e da sociedade, que rendeu composições impregnadas de lirismo e/ ou sarcasmo, joias da música popular brasileira. Vinte e duas destas preciosidades, algumas retiradas do baú do esquecimento, voltam a reluzir em ‘Noel Rosa, preto e branco’, álbum duplo que Valéria Lobão lança pelo selo Tenda da Raposa. A afinada cantora carioca, também idealizadora e produtora executiva do CD, troca a aparente informalidade dos sambas, foxes, modinhas e outros gêneros perpetuados na produção de Noel pelo som camerístico, criado com o luxuoso auxílio de 22 pianistas convidados. A delicadeza impressa em cada faixa parece ser naturalmente (mais) adequada às canções que abordam as dores de amores de apaixonado criador, caso de ‘Você só mente’ (Noel Rosa/ Francisco Alves/ Helio Rosa), ‘Julieta’ (Noel Rosa/ Eratóstenes Frazão) e ‘Pra que mentir’ (Noel Rosa/ Vadico), respectivamente conduzidas por Adriano Souza, Rafael Martini e Vitor Gonçalves. Embora o samba resista bem nas teclas do piano tocado por Fernando Leitzke, em ‘Eu agora fiquei mal’ (Noel Rosa/ Vadico), sente-se falta de alguma malemolência no incrível ‘Mulato bamba’ (Noel Rosa), faixa tocada pro Gilson Peranzzetta. Difícil não lembrar a ótima versão do cantor Marcos Sacramento em seu disco ‘Memorável samba’. Já o ceticismo de ‘Filosofia’ (Noel Rosa/ André Filho) é realçado pelo bonito arranjo do pianista da faixa, Itamar Assiere. Além da turma de pianistas, que inclui, ainda, João Donato (‘Cor de cinza’), André Mehmari (‘As pastorinhas’) e Leandro Braga (‘Minha viola’), entre outros, também participam do disco os cantores Joyce Moreno (‘Só pode ser você’), Mariana Baltar (‘Pela décima vez’), Marcelo Pretto (E não brinca não’), Nina Wirtti (‘Eu sei sofrer’), João Cavalcanti e Moyseis Marques (‘Eu vou pra Vila’). Produzido por Carlos Fuchs (piano em ‘Último desejo’), ‘Noel Rosa, preto e branco’ inova na abordagem da obra singular do genial compositor, e marca a discografia de Valéria Lobão, uma boa intérprete a serviço das canções – como nos tempos de Noel.

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