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Mais pop, 'Estratosférica' registra o atual momento artístico de Gal Costa


Se o auto tune não basta para embelezar o canto, altas doses de photshop parecem ser suficientes para adulterar a percepção da realidade (ao menos em parte). Uma Gal Costa literalmente renovada é o que se vê na capa de ‘Estratosférica’, seu novo álbum lançado pela gravadora Sony Music. A foto registra o atual momento artístico da mais doce bárbara, que comemora 70 anos de idade e 50 anos de carreira em 2015. Retoques digitais e uma falsa cabeleira compõem a imagem, feita sob medida para novos fãs, que não presenciaram a juventude da cantora, e para aqueles saudosistas que insistem em não aceitar que o tempo não para. Guiada pelo jornalista Marcus Preto, que assina a direção artística e a seleção de repertório de ‘Estratosférica’ (a quatro mãos), Gal volta a trabalhar com Kassin e Moreno Veloso, produtores de ‘Recanto’ (2011), estupendo álbum conceitual arquitetado por Caetano Veloso, que revolveu a carreira da baiana, tirando-a do confortável trono de dama da canção. Mas se ‘Recanto’ continha apenas composições do baiano, ‘Estratosférica’ traz músicas assinadas por autores das mais diferentes gerações, alguns estreantes na voz de Gal: Arthur Nogueira, Alberto Continentino, Céu, Pupillo, Thalma de Freitas, Criolo, Jonas Sá, Lirinha, Marisa Monte, Marcelo Camelo, Mallu Magalhães, Lincoln Olivetti e Rogê. Muitos deles rubricam composições em parceria com grandes nomes da geração que cunhou a sigla MPB na cultura brasileira, como Caetano, João Donato e Milton Nascimento. ‘Estratosférica’ começa muito bem, com o rock ‘Sem medo nem esperança’ (Arthur Nogueira/ Antonio Cícero), que sugere um disco arrebatador em versos como “Não sou mais tola/ Não mais me queixo/ Não tenho medo, nem esperança/ Nada do que fiz, por mais feliz/ Está à altura do que há por fazer”. A excelência permanece na balada lisérgica ‘Jabitacá’ (José Paes Lira/ Junio Barreto/ Bactéria). Contudo, nem o ótimo arranjo de Lincoln Olivetti (1954 – 2015) salva os versos a la Luiz Caldas e Carlinhos Brown da faixa-título, ‘Estratosférica’ (Céu/ Pupillo/ Junio Barreto). A elegante ‘Esctasy’ (João Donato/ Thalma de Freitas) precede ‘Dez anjos’, que une o sotaque melódico de um Milton Nascimento setentista à letra do superestimado Criolo, que a cantora faz brilhar com sua interpretação impecável. Faixa que nomeia o seu atual show de voz e violão, ‘Espelho d’água’ (Marcelo Camelo/ Thiago Camelo) é tristonha balada romântica, tão radiofônica quanto a pop ‘Quando você olha pra ela’ (Mallu Magalhães), escolhida para divulgar o disco. Gal dando nobre acabamento interpretativo a uma composição de Mallu Magalhães, quem diria? ‘Por Baixo’ (Tom Zé) é adorável momento cheio de malícia, enquanto ‘Casca’ (Alberto Continentino/ Jonas Sá) e ‘Muita sorte’ (Lincoln Olivetti/ Rogê) parecem priorizar mais seus arranjos, do que o canto de Gal. ‘Amor, se acalme’ (Arnaldo Antunes/ Marisa Monte/ Cezar Mendes) segue a trilha pueril que marca as composições de Marisa Monte. Já no final, ‘Estratosférica’ decola novamente com as estranhezas sonoras da sedutora ‘Anuviar’ (Moreno Veloso/ Domenico Lancelloti) e da romântica ‘Você me deu’ (Zeca Veloso/ Caetano Veloso). Incluída como bônus por estar na trilha sonora da novela ‘Babilônia’, a regravação de ‘Ilusão à toa’ (Johnny Alf) mostra Gal recriando uma grande canção sem se auto plagiar. Ela poderia viver disso, de cantar brilhantemente clássicos da MPB, mas ao contrário da maioria das colegas de sua geração – a até mesmo de outras mais jovens – prefere arriscar. Inclusive quando revê a obra de um compositor como Lupicínio Rodrigues (1914 – 1974) de forma heterodoxa, como no elogiado show ‘Ela disse-me assim’, que ainda está em cartaz. Pelo grau de ineditismo, o novo álbum pode remeter a ‘Hoje’ (2006), disco em que a cantora priorizou um repertório original de jovens compositores, embalados por arranjos convencionais de César Camargo Mariano. Após tantas informações desencontradas, tantos boatos transformados em notícias, ‘Estratosférica’ não chega a ser surpreendente – e nem roça a grande beleza de ‘Recanto’. O que não empana a coragem de Gal, que aos quase 70 anos, mantém a jovialidade do seu canto e do seu espírito. Com ou sem auto tune ou photshop

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