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Não tente rotular Mart'nália




“Mudei de poesia e fui pro pop, sem cuíca, pandeiro e tamborim”, avisa Mart’nália no encarte do seu novo disco, apropriadamente chamado ‘Não tente compreender’. Para produzir seu sexto álbum de estúdio, a filha de Martinho da Vila convocou Djavan, influência musical assumida pela cantora que sempre namorou a chamada black music. Embora o bom e velho samba ecoe aqui e ali, ‘Não tente compreender’ distancia a filha de Martinho da Vila do gênero musical que fez a fama da família Ferreira e a reconecta à sonoridade de ‘Minha cara’ (1995), seu segundo disco. Sim, muito antes de ser reconhecida nacionalmente através do samba, Mart’nália já fazia um som pop, soul e black.
O público preguiçoso e mal acostumado por artistas que oferecem mais do mesmo a cada lançamento pode demorar a compreender as escolhas musicais da personalíssima cantora que, acertadamente, foge do estereótipo de sambista, num movimento iniciado no álbum anterior, ‘Madrugada’ (2008).
Com seu caráter musical naturalmente agregador, Mart’nália filtra a produção de compositores de diferentes gerações e estilos através da voz rouca e das divisões inconfundíveis. A ambiência soul obtida por Djavan faz a cantora soar sedutora já na faixa que abre o disco, ‘Namora comigo’ (Paulinho Moska), bonita balada escolhida para divulgar o trabalho.
‘Surpresa’ (Mart’nália/ Arthur Maia/ Ronaldo Barcellos) e ‘Que pena, que pena... ’ (Mart’nália/ Mombaça) evidenciam a opção da compositora carioca por não deixar a leveza de lado ao falar de amor.
Também assinada por Mart’nália, em parceria com Ivan Lins e Zélia Duncan, ‘Serei eu?’ traz a marca indelével de Ivan – artista que soou soul no início da carreira – e possibilita à cantora momento mais intenso, superado apenas pelo belo registro de ‘Reversos da vida’ (Martinho da Vila). ‘Depois cura’ (Lula Queiroga) comprova o crescente interesse das cantoras contemporâneas pela abrangente obra do compositor pernambucano, enquanto a faixa que nomeia o disco, ‘Não tente compreender’ (Marisa Monte/ Dadi), tira sua autora da atual zona de conforto das canções ultrarromânticas.
Mart’nália aparece à vontade em ‘Itinerário’ (Max Viana) e comprova a diferença que uma cantora faz, ao registrar pela primeira vez uma composição de Nando Reis, ‘Zero muito’. O ex-Titã pode ter, finalmente, encontrado uma interprete para sua obra. O lugar está vago desde a prematura morte de Cássia Eller, não por acaso, outra cantora de forte personalidade que não se deixava rotular.
Curiosamente, Gilberto Gil e Caetano Veloso não embarcaram na proposta musical de Mart’nália e ofereceram a ela os sambas ‘Eu te ofereço’ e ‘Demorou’, respectivamente, com leve vantagem para a composição de Gil.
‘Os sinais’, do alagoano Junior Almeida, é a música que mais se aproxima do universo musical de Djavan e se impõe como uma das melhores faixas de ‘Não tente compreender’.
Estrategicamente, um samba menos heterodoxo de Adriana Calcanhotto, ‘Vá saber’, gravado anteriormente pela própria autora e por Marisa Monte, encerra o disco. “Sem cuíca, pandeiro e tamborim”, mas com a autoridade de quem pode tirar o pé do samba quando quiser.  Aos 27 anos de carreira, Mart’nália não precisa se submeter a preconceituosos enquadramentos estéticos. Sua música vai muito mais além.

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