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O samba original - e de fato - de Pedro Miranda


Um amulatado Pedro Miranda estampa a capa de ‘Samba original’, terceiro – e excelente – disco solo deste cantor e músico carioca, que ganhou notoriedade tocando no Grupo Semente, na Lapa. A foto remete à figura romanceada dos sambistas da primeira metade do século passado, de onde, não por acaso vem algumas pérolas do irretocável repertório. Pequenas belezas das quais Pedro espanou a poeira do tempo, restaurando-as com esmero e precisão, e dando-lhes contemporaneidade. De 1932 vem o clássico ‘A razão dá-se a quem tem’, de Ismael Silva e Noel Rosa. Gravado originalmente por Francisco Alves (1898 – 1952) e Mario Reis (1907 – 1981), a nova versão ganha as vozes macias de Pedrinho e de Caetano Veloso, convidado na faixa, num dueto que faz jus aos primeiros intérpretes. Também dos anos 1930, é o engraçado ‘Se passar da hora’, de Baiaco e Boaventura dos Santos, ou melhor, de Osvaldo Vasques, um dos fundadores da primeira escola de samba, a ‘Deixa falar’, e de Ventura, portelense de primeira hora. Três anos antes de ‘Pra que discutir com madame’ ser gravada por um de seus compositores, o carioca Janet de Almeida, parceiro de Haroldo Barbosa, o cantor paulista Vassourinha lançou a irreverente ‘Amanhã eu volto’, dos versos “Você tem mania de ser grã-fina e só diz asneira/ Diz que tem pavor da gente de cor lá da gafieira”. Perspicaz, Pedro já havia pescado ‘Amanhã eu volto’, pelo menos, desde 2013, como comprova um vídeo no YouTube. Única parceria de Assis Valente e Ataulfo Alves, a irresistível ‘Batuca no chão’ (1944) tem sua manemolência tropical (tropicalista?) ressaltada pelo suingue das guitarras de Arto Lindsay e Pedro Sá e pelo maravilhoso coro que acompanha Pedro na gravação. Aliás, há que se ressaltar a esmerada produção musical assinada por Luís Felipe de Lima: um luxo. ‘Meu pandeiro’ (1947), raro samba de Luiz Gonzaga (1912 – 1989), em parceria com Ari Monteiro, reafirma a ótima pesquisa que deu origem ao fino repertório. Faixa que encerra o álbum, ‘Meu pandeiro’ ganha ares biográficos/ confessionais na voz e na ponta dos dedos de Pedro Miranda. Cantada musical numa figura presente em outros tempos musicais, ‘Garota dos discos’ (Wilson Moreira, 1952) balança, cheia de bossa. Assinada por Elton Medeiros e Zé Kéti, a faixa-título é samba de gafieira, cuja letra sintetiza o álbum: “realmente original” e surpreendente ao fugir das obviedades pra lá de regravadas. Da década de 1970, Pedro Miranda escolheu três momentos bem distintos. A carioca ‘Lola crioula’ (Gerado Babão), buliçosa, colorida pela guitarra de Pedro Sá; a reverente ‘Imitação’, do baiano Batatinha – momento mais lírico do disco – e ‘Santo Amaro’ (Luiz Cláudio Ramos/ Franklin da Flauta/ Aldir Blanc), respiro poético em voz e piano (Carlos Fuchs). ‘Quero você’ (Wilson Moreira/ Nei Lopes, 1986) conecta o samba de Pedro ao partido-alto da melhor qualidade. De 2004 vem a composição mais recente de ‘Samba original’, ‘Samba de dois-dois’, de Roque Ferreira e Paulo César Pinheiro. Apesar da bela gravação de Pedrinho, é quase impossível não pensar em Clara Nunes ou em Mariene de Castro como possíveis intérpretes de mais um samba desta preciosa dupla de compositores. Sem fazer alarde, de mansinho, com interpretações refinadas, Pedro Miranda vem conquistando um merecido espaço na galeria de sambistas. Seu ‘Samba original’ já figura como um dos melhores discos de 2016. 

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