Pular para o conteúdo principal

A arca de Noé e Vinicius de Moraes navega em mar de almirante


Derradeiro projeto de Vinicius de Moraes (1913 – 1980), ‘A arca de Noé’ ressurge no ano do centenário do poeta e compositor. Misturando canções dos discos de 1980 e 1981, além de poemas musicados para a nova versão, a arca capitaneada por Susana de Moraes navega em mar de almirante. Conduzida pelos timoneiros Dé Palmeira e Adriana Calcanhotto, a lúdica embarcação aposta na segurança das rotas (quase todas) experimentadas pela nau original.
Como na arca dos anos 1980, a seleção das espécies cantantes que representam a música popular brasileira, aposta mais em nomes consagrados do que verdadeiramente em novatos, como Tulipa Ruiz e Marcelo Jeneci, por exemplo. A maioria dos artistas naturalmente leva a canção escolhida para o seu habitat e, felizmente, não há pretensiosas “desconstruções” dos clássicos infantis. Contudo, há arrojo nas melhores faixas do CD. A revoada etérea d’As borboletas (Cid Campos/ Vinicius de Moraes) provocada pela interpretação impressionista de Gal Costa, a beleza onírica da versão de ‘A cachorrinha’ (Antônio Carlos Jobim/ Vinicius de Moraes) cantada por Maria Luiza Jobim e o jazzístico passo d’O elefantinho (Adriana Calcanhotto/ Vinicius de Moraes) conduzido por Adriana Partimpim, são destaques, assim como os arranjos assinados por Calcanhotto, Domenico Lancellotti, Lucas Paiva e Dé Palmeira.
A grandiloquência da faixa de abertura, que batiza o delicado álbum, mantém o clima cinematográfico do arranjo original feito pelo tropicalista Rogério Duprat para a parceria de Toquinho e Vinicius. Maria Bethânia, Seu Jorge e Péricles formam o heterogêneo e interessante trio de intérpretes. Talvez influenciado pela grandiosidade da música, Seu Jorge pareça grave demais.  A viagem ganha ares mais graciosos quando Caetano Veloso e Moreno Veloso põem ‘O leão’ (Fagner/ Vinicius de Moraes) na roda de samba baiano. Outras vertentes do ritmo norteiam mais versões.  Entre os seminais calango e maxixe, Zeca Pagodinho tira ‘O pato’ (Toquinho/ Vinicius de Moraes/ Paulo Soledade) do ritmo da valsa eternizada pelo MPB-4, assim como Chico Buarque faz ‘O pinguim’ (Toquinho/ Paulo Soledade/ Vinicius de Moraes) sambar miudinho. Ainda nas faixas mais quebradas, Ivete Sangalo encarna ‘A galinha d’Angola’ (Toquinho/ Vinicius de Moraes) embalada pelo ritmo kuduro do grupo português Buraka Som Sistema. Impossível não lembrar o desempenho de Ney Matogrosso no disco e no especial de TV, lançado simultaneamente.
Eficientes, Mart’nália amacia ‘O gato’ (Toquinho/ Vinicius de Moraes/ Luiz Bacalov) e Erasmo Carlos faz versão roqueira de ‘O pintinho’ (Toquinho/ Vinicius de Moraes/ Gilda Mattoso). Os lacrimosos Chitãozinho & Xororó revivem ‘A corujinha’ (Toquinho/ Vinicius de Moraes/ Sergio Bardotti), anteriormente interpretada com apuro e inteligência por Elis Regina. Mariana de Moraes colore com os tons pastéis da reverência ‘A formiga’ (Vinicius de Moraes/ Paulo Soledade).  Melhor é a versão burlesca da Orquestra Imperial para ‘A foca’ (Toquinho/ Vinicius de Moraes). Tema naturalmente emocionante, ‘São Francisco’ (Toquinho/ Vinicius de Moraes) ganha boa releitura de Miúcha e Paulo Jobim, enquanto Marisa Monte e Arnaldo Antunes soa protocolares em ‘As abelhas’ (Luiz Bacalov/ Vinicius de Moraes) e ‘O peru’ (Toquinho/ Paulo Soledade/ Vinicius de Moraes), respectivamente.
A divertida viagem chega ao fim na voz terna de Vinicius de Moraes em ‘A casa’, outro clássico do ‘Poetinha’ eternizado na mente de crianças de todas as idades. 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Joias musicais de Gilberto Gil são reeditadas

               A Universal Music reabre seu baú de preciosidades. Desta vez, a dona do maior acervo musical do país, traz duas joias do cantor, compositor e violonista Gilberto Passos Gil Moreira, recentemente eleito imortal pela Academia Brasileira de Letras. De 1971, o disco londrino, ‘Gilberto Gil’, reaparece em nova edição em vinil, enquanto ‘Refestança’, registro do histórico encontro de Gil e Rita Lee, de 1977, finalmente ganha versão digital.             Gravado durante o exílio do artista baiano em Londres, o quarto LP de estúdio de Gilberto Gil foi produzido por Ralph Mace para o selo Famous e editado no Brasil pela Philips, atual Universal Music. O produtor inglês também trabalhava com Caetano Veloso, que havia lançado seu primeiro disco de exílio no mesmo ano. Contrastando com a melancolia expressada por Caetano, Gil fez um álbum mais equilibrado, dosando as saudades do Brasil...

50 anos de Claridade

Clara Nunes (1942 – 1983) viu sua carreira deslanchar na década de 1970, quando trocou os boleros e um romantismo acentuado pela cadência bonita do samba, uma mudança idealizada pelo radialista e produtor musical Adelzon Alves. Depois do sucesso do LP ‘Alvorecer’, de 1974, impulsionado pelas faixas ‘Menino deus’ (Mauro Duarte/ Paulo César Pinheiro), ‘Alvorecer’ (Délcio Carvalho/ Ivone Lara) e ‘Conto de areia’ (Romildo/ Toninho Nascimento), a cantora mineira reafirmou sua consagração popular com o álbum ‘Claridade’. Lançado em 1975, este disco vendeu 600 mil cópias, um feito excepcional para um disco de samba, para uma cantora e, sobretudo, para um disco de samba de uma cantora. Traço marcante na trajetória artística e na vida de Clara Nunes, o sincretismo religioso está presente nas faixas ‘O mar serenou’ (Candeia) e ‘A deusa dos orixás’, do pernambucano Romildo e do paraense Toninho Nascimento, os mesmos autores de ‘Conto de areia’. Eles frequentavam o célebre programa no qual Adelzon...

Galeria do Amor 50 anos – Timóteo fora do armário (ou quase)

            Agnaldo Timóteo lançou o disco ‘Galeria do amor’ em 1975. Em pleno regime militar, o ídolo popular, conhecido por sua voz grandiloquente e seu temperamento explosivo, ousou ao compor e cantar a balada sobre “um lugar de emoções diferentes/ Onde a gente que é gente/ Se entende/ Onde pode se amar livremente”. A canção, que se tornaria um sucesso nacional, foi inspirada na famosa Galeria Alaska, antigo ponto de encontro dos homossexuais na Zona Sul carioca – o que passaria despercebido por boa parte de seu público conservador. O mineiro de Caratinga já havia suscitado a temática gay no disco ‘Obrigado, querida’, de 1967. A romântica ‘Meu grito’, feita por Roberto Carlos para a sua futura mulher, Nice, ganhou outras conotações na voz poderosa de Timóteo. “Ai que vontade de gritar seu nome, bem alto no infinito (...), só falo bem baixinho e não conto pra ninguém/ pra ninguém saber seu nome, eu grito só ‘meu bem'”, canta Agnaldo, que nunca assu...