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Cida Moreira: uma dama longe da obviedade


“Antes de Deus criar terra e mar/ Ele segurava as estrelas na mão/ Que giravam em seus dedos/ Como areia em grão/ Até que um dia uma caiu...”, diz a versão do ator e diretor teatral Antônio Carlos Brunet para ‘Lost in the stars’ (Maxwell Anderson/ Kurt Weill), faixa que encerra ‘A dama indigna’, álbum de Cida Moreira lançado recentemente pela gravadora Joia Moderna. De seu quarto no ‘Hotel das estrelas’ (Jards Macalé/ Duda), nossa solitária dama coloca seu canto dramático a serviço de canções interligadas por uma linha teatral que envolve o ouvinte logo na primeira audição. Acompanhada apenas por seu vigoroso – e sensível – piano, Cida irmana compositores tão distantes quanto Gonzaguinha (‘Palavras’) e David Bowie (‘Soul love’). Apesar da indisfarçável solitude que atravessa as 14 faixas do disco, é o amor em suas mais diversas formas que dá o tom em ‘A dama indigna’, mesmo que em certo momento ela o renegue: “Quem chora por amor é um imbecil/ Quem vive de ilusão é muito mais”, decretam os versos de ‘Sou assim’. Composta por Toquinho e Gianfrancesco Guarnieri (1934 – 2006) para a peça ‘Botequim’ (1973) estrelada por Marlene, a canção encontrou em Cida Moreira interpretação na justa medida.
Assinando direção artística, concepção, repertório e arranjos, Cida dá verdadeira lição para muitas novatas que já surgem com ares de estrelas, do que é lidar com a arte em um sentido mais profundo e verdadeiro. A sequência que une as tristes e lindas ‘Lullaby’ (Tom Waits), ‘Mãe’ (Caetano Veloso) e ‘Uma canção desnaturada’ (Chico Buarque) atesta sensibilidade incomum à cena musical contemporânea. Os 30 anos de carreira, contados a partir do lançamento de ‘Summertime’ (1981), transformaram a voz de Cida em instrumento por vezes rascante, mas sempre capaz de delicados afagos musicais – de um jeito muito próprio – como em ‘Maior que o meu amor’ (Renato Barros), tema lançando por Roberto Carlos em 1970, ou em ‘O ciúme’ (Caetano Veloso). Curiosamente a operística Cida visita o repertório da incontornável (e cada vez mais clássica) Gal Costa desde o já citado ‘Summertime’, quando gravou ‘Vapor barato’ (Jards Macalé/ Wally Salomão). Sempre dona da situação, ela passeia segura pela clássica ‘The man I love’ (George Gershwin/ Ira Gershiwn) e pela conceitual ‘Tango ‘till they’re sore (Tom Waits) antes de arrebatar o ouvinte com arrasadora interpretação de ‘Back to black’ (Amy Winehouse/ Mark Ronson) com direito a vinheta de ‘Summertime’ (Du Bose Heyward/ George Gershiwn). Juntar Janis e Amy pode parecer evidente, mas não é para qualquer dama, é tarefa para poucas, como a excelente – e nada óbvia – Cida Moreira.

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