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Bethânia em tempo de delicadeza


Apesar da fama construída (em parte) pela alta carga dramática de suas apresentações, Maria Bethânia deixou de lado os excessos em ‘Amor, Festa, Devoção’, seu novo show que teve estréia nacional no dia 23 de outubro, no Canecão. Baseado no repertório dos dois álbuns recém-lançados, ‘Encanteria’ ‘Tua’, o espetáculo remete a um amoroso Brasil caboclo, “que pode desaparecer ao ser substituído por um progresso vazio”, disse a baiana de Santo Amaro da Purificação.
Ela optou por tons mais baixos para cantar o amor que, se já foi arrebatador, hoje se mostra maduro e contido, em novas canções como ‘É o amor outra vez’ (Dori Caymmi e Paulo César Pinheiro) e ‘Tua’ (Adriana Calcanhotto) e mesmo em sucessos alheios, inéditos até então na sua voz, como ‘Queixa’ e ‘Dama do Cassino’, ambas de Caetano Veloso, a última prejudicada pela insegurança da intérprete com o hábil jogo de palavras composto pelo irmão.
A ‘festa’ e ‘devoção’ se impõem na primeira metade do show, quando Bethânia entoa, ainda por detrás das cortinas a singela ‘Santa Bárbara’ (Roque Ferreira).
No cenário pretensamente clean da diretora Bia Lessa - um manto de rosas vermelhas suspenso no ar, a cantora (de calça preta e blusa branca), revive ‘Vida’ (Chico Buarque) e faz crer aos súditos que lá está a Bethânia dramática de sempre – que só aparece de verdade ao recitar ‘Olho de Lince’, o belo poema de Waly Salomão.
‘Feita na Bahia’ e ‘Coroa do Mar’ (as duas de Roque Ferreira) crescem no palco, enquanto o petardo ‘Linha de Caboclo’ (Paulo César Pinheiro) não decola plenamente por causa da insegurança da cantora com a letra.
No já tradicional momento ‘íntimo’, quando Bethânia respira, estão as já citadas ‘É o amor outra vez’, ‘Queixa’ e ‘Tua’. Para deleite dos fãs, ‘Explode Coração’ vem à capella, ou nem tanto, afinal todo o Canecão acompanha a intérprete no sucesso de Gonzaguinha.
‘Você Perdeu’ (Marcio Valverde e Nélio Rosa) é embalada por leve ironia dos gestos. 'Drama' (Caetano Veloso) antecede um dos pontos altos da noite: a ‘Balada de Gisberta’, do português Pedro Abrunhosa, devidamente escolhida pela cantora - os doloridos versos da canção composta em homenagem a um travesti brasileiro assassinado em Portugal caem à perfeição em sua voz.
Outro sucesso de Caetano, ‘Não identificado’, abre a segunda parte do show, quando Bethânia fala do amor que sente pelos pais, e dedica o show à Dona Canô.
‘Estrela’, congada de autoria de Vander Lee, que já se destaca no CD, fica ainda mais bonita no show e é a deixa para que o Brasil rural, caboclo, apareça de vez (emoldurado por dezenas de quadros que retratam fachadas de casas nordestinas) em músicas como ‘Serra da Boa Esperança’ (Lamartine Babo), ‘Saudade dela’ (Roberto Mendes e Nizaldo Costa) e popularesca ‘É o amor’. Como tudo que Bethânia toca vira ouro, os fãs cantam o sucesso dos filhos de Francisco como se fosse um clássico da MPB que a baiana (conscientemente ou não) ajudou a sedimentar.
Para a alegria de ouvidos mais sensíveis, a cantora enfileira duas preciosidades do repertório de Dalva de Oliveira, ‘Andorinha’ (Sylvio Caldas) e ‘Bandeira Branca (Max Nunes e Laércio Alves).
Bethânia deixa o palco com ‘Encanteria’ (Paulo César Pinheiro), dos versos “Quero nada que clareia, quem clareia aqui sou eu”.A despeito da insegurança da estréia carioca (adiada pela cantora em uma semana), ‘Amor, Festa e Devoção’ deverá se iluminar ainda mais durante a turnê.

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