Pular para o conteúdo principal

Em noites luminosas, Gal Costa apresenta o já antológico show 'Recanto'


Musa, Gal Costa inspira Caetano Veloso há mais de quatro décadas. Juntos criaram inúmeros clássicos da música popular brasileira. ‘Recanto’, a mais recente parceria dos dois baianos suscitou dúvidas entre os de má fé: seria um disco de compositor ou da cantora? Em noites luminosas, Maria da Graça Costa Penna Burgos respondeu a questão da melhor forma, colocando sua voz tamanha a serviço de 22 canções habilmente costuradas no roteiro do recém- nascido show.
Linda, leve e solta, Gal retorna aos palcos rejuvenescida e rejuvenescendo antigos sucessos. Sua sensualíssima interpretação de ‘Folhetim’ (Chico Buarque, 1978) pode não ter o frescor dos tempos de ‘Água Viva’, mas apresenta toda a carga dramática de uma intérprete que traz a vida na voz, com bem explicita ‘Minha voz, minha vida’ (Caetano Veloso, 1981). A mesma voz, rasgada em ‘Divino maravilhoso’ (Caetano Veloso/ Gilberto Gil, 1968), doce em ‘Baby’ (Caetano Veloso, 1968), precisa em ‘Força estranha’ (Caetano Veloso, 1978), toma definitivamente para si as novas canções escritas por Caetano, que surgem ainda mais intensas no espetáculo, seja a comovente obra-prima ‘Recanto escuro’, a existencial ‘Tudo dói’ ou a ensolarada ‘Cara do mundo’. A pegada impressa por Domenico Lancellotti (bateria e MPC), Pedro Baby (guitarras e violão) e Bruno Di Lullo (baixo) em ‘Segunda’ – acústica no disco – impulsiona Gal em interpretação tão contundente quanto a da hipnótica e crítica ‘Neguinho’. Em ‘Autotune autoerótico’ a sonoridade oferecida pela ferramenta-título não é explorada, é o canto absoluto da baiana que faz a canção andar pelos caminhos da grande beleza, que se derrama plenamente em ‘Mansidão’ (Caetano Veloso, 1982). Os delicados versos da (até então) obscura canção encontram no cantar que a voz lhe deu o veículo perfeito para sua iluminação. Gal deu às experimentações sonoras feitas por Caetano a partir do disco Cê (2006) a visibilidade que nem mesmo o compositor conseguiu. 
Se em ‘Fa-tal, Gal a todo vapor’ (1972) ela colocava as mãos nas cadeiras durante um samba baiano, quarenta anos mais tarde os quadris balançam ao som do batidão de ‘Miami Maculelê’, demolidor e irresistível funk. Que outra colega de profissão, contemporânea ou mesmo de gerações mais recentes, cometeria tamanha ousadia? Atrevimento parecido foi colocar no roteiro o popularíssimo sucesso ‘Um dia de domingo’ (Michael Sullivan/ Paulo Massadas, 1985). Embora interpretado com graça que inclui a imitação de Tim Maia (1942 – 1998), o ritmo coeso do show cai neste momento. Melhor é a recriação de ‘Vapor barato’ (Jards Macalé/ Waly Salomão’, 1972), número que entrou definitivamente para a lista de clássicos da cantora a partir de sua inclusão na trilha sonora do filme ‘Terra estrangeira’ (1996). A pulsação roqueira roça a primeira e eletrizante versão de estúdio gravada por Gal em um compacto. Do refinado disco ‘Cantar’ (1974), entra ‘Barato total’, composição sincopada de Gilberto Gil, cujos versos podem deixar cantoras desavisadas em ofegantes maus lençóis. Gal tira de letra, exibindo vitalidade também presente em ‘Deus é amor’ (Jorge Ben Jor, 1968), espertamente pinçada do primeiro disco solo da cantora.
Mítica sereia da música popular brasileira, bússola e desorientação, Gal Costa expande no palco o conceito original do disco ‘Recanto’: “Quanto mais simples, mais simplesmente Gal”, nas sábias palavras de Caetano Veloso.

Comentários

Élida disse…
Se já queria ver o show antes, agora então..rs...tomara que ela faça em um lugar acessível a pobres mortais como eu...bjs
Vi disse…
Apesar de não ser a fã, fiquei também com muita vontade de ver o show. Belo texto, Julio!
Ricardo Corrêa disse…
Lamento muito por esse show. Quero crer que o valor do ingresso tenha sido exigência da casa. Mas em compensação, os DEUSES da cultura presentearam-me.

Neste último fim de semana, assisti a um show FAN-TÁS-TI-CO!!! A Zizi Possi apresentou-se no Teatro Nelson Rodrigues, no Centro do Rio, por apenas R$ 20,00. Neste, eu pagaria até R$ 1.000,00. Profissionalismo, respeito, técnica vocal entre outras.

A ZIZI POSSI é a MAIOR CANTORA deste país.

DE-FI-NI-TI-VA-MEN-TE!!!

Postagens mais visitadas deste blog

A voz do samba - O primeiro disco de Alcione

  “Quando eu não puder pisar mais na Avenida/ Quando as minhas pernas não puderem aguentar/ Levar meu corpo junto com meu samba/ O meu anel de bamba/ Entrego a quem mereça usar”. Ao lançar seu primeiro disco, ‘A voz do samba’, em 1975, Alcione viu os versos melancólicos de ‘Não deixe o samba morrer’ (Edson Conceição/ Aloísio Silva) ganharem o país, tornando-se o primeiro sucesso da jovem cantora. Radicada no Rio de Janeiro desde 1967, a maranhense cantava em casas noturnas que marcaram época nas noites cariocas. Nestas apresentações, seu abrangente repertório incluía diferentes gêneros da música brasileira, além de canções francesas, italianas e norte-americanas também presentes no rádio. Enquanto isso, o samba conquistava novos espaços na década de 1970. Em 1974, Clara Nunes viu sua carreira firmar-se nacionalmente com o disco ‘Alvorecer’, do sucesso de ‘Conto de areia’ (Romildo Bastos/ Toninho Nascimento). No mesmo ano, Beth Carvalho obteve seu primeiro êxito como sambista com ‘1...

Galeria do Amor 50 anos – Timóteo fora do armário (ou quase)

  Agnaldo Timóteo lançou o disco ‘Galeria do amor’ em 1975. Em pleno regime militar, o ídolo popular, conhecido por sua voz grandiloquente e seu temperamento explosivo, ousou ao compor e cantar a balada sobre “um lugar de emoções diferentes/ Onde a gente que é gente/ Se entende/ Onde pode se amar livremente”. A canção, que se tornaria um sucesso nacional, foi inspirada na famosa Galeria Alaska, antigo ponto de encontro dos homossexuais na Zona Sul carioca – o que passaria despercebido por boa parte de seu público conservador. O mineiro de Caratinga já havia suscitado a temática gay no disco ‘Obrigado, querida’, de 1967. A romântica ‘Meu grito’, feita por Roberto Carlos para a sua futura mulher, Nice, ganhou outras conotações na voz poderosa de Timóteo. “Ai que vontade de gritar seu nome, bem alto no infinito (...), só falo bem baixinho e não conto pra ninguém/ pra ninguém saber seu nome, eu grito só ‘meu bem'”, canta Agnaldo, que nunca assumiria sua suposta homossexualidade. ...

Joias musicais de Gilberto Gil são reeditadas

               A Universal Music reabre seu baú de preciosidades. Desta vez, a dona do maior acervo musical do país, traz duas joias do cantor, compositor e violonista Gilberto Passos Gil Moreira, recentemente eleito imortal pela Academia Brasileira de Letras. De 1971, o disco londrino, ‘Gilberto Gil’, reaparece em nova edição em vinil, enquanto ‘Refestança’, registro do histórico encontro de Gil e Rita Lee, de 1977, finalmente ganha versão digital.             Gravado durante o exílio do artista baiano em Londres, o quarto LP de estúdio de Gilberto Gil foi produzido por Ralph Mace para o selo Famous e editado no Brasil pela Philips, atual Universal Music. O produtor inglês também trabalhava com Caetano Veloso, que havia lançado seu primeiro disco de exílio no mesmo ano. Contrastando com a melancolia expressada por Caetano, Gil fez um álbum mais equilibrado, dosando as saudades do Brasil...