Pular para o conteúdo principal

Divinas


Rio - Quem for assistir ao musical ‘Divina Elizeth’, que estréia hoje e ficará em cartaz de quinta-feira a domingo, às 19h, no Teatro Ginástico, corre o risco de sair enfeitiçado, se não pela ‘mulata maior’ — um dos inúmeros apelidos que Elizeth Cardoso ganhou ao longo de sua carreira —, por uma bela morena de vestido azul. Com hipnotizantes olhos verdes, Beatriz Faria tem ares de realeza e certa timidez, herdados do pai.
“Desde cedo pensei em ser cantora, mas sempre fui muito tímida e tinha medo de seguir um caminho óbvio. Me questionava muito, apesar de viver cantando”, revela a filha de Paulinho da Viola, uma das cinco cantoras que interpretam Elizeth Cardoso no espetáculo, que veio de São Paulo.
Nascida numa família genuinamente musical — neta de César Faria, um dos fundadores do mítico conjunto Época de Ouro, e sobrinha, pelo lado materno, do violonista Raphael Rabello —, Beatriz cresceu ouvindo o fino do choro, samba e bossa-nova. “As pessoas chegavam lá em casa e simplesmente tocavam, sem cerimônia, sem formalidades”. Daí veio o gosto musical da moça de 29 anos: “Ouço muito samba, gosto de pesquisar. Volta e meia acho um LP de 1910 na casa do meu pai e vou escutar para ver como se fazia, como se tocava”.
Quando cursava a faculdade de Jornalismo, Beatriz descobriu um problema nas cordas vocais, que adiou, por quatro anos, o sonho de ser cantora. “Fiz muito exercício com uma fonoaudióloga. Pensei que nunca mais poderia cantar”, lembra. A alta só veio depois do diploma, quando a então jornalista trabalhava na produtora da família.
“Meu pai foi gravar o ‘Acústico MTV’ e substituiu os habituais convidados por um coro feminino, como as pastoras das escolas de samba, e me chamou para participar”, diz. Durante os shows, surgiu o convite para o teste no musical: “Elizeth e meu pai foram muito amigos. Por isso aceitei fazer o teste, pela familiaridade com o repertório e por achá-la incrível. Se fosse outra cantora, talvez não fizesse”.
Sem planos para gravar o primeiro CD (“Quero amadurecer minha presença no palco e pesquisar mais”), Bia aproveita o tempo livre ouvindo mais MPB. “Whitney Houston é atual?”, pergunta rindo. “Parei por aí”, diz a cantora que, além do samba, herdou do pai outras paixões: a Portela e o Vasco da Gama. “Ele conseguiu seduzir todos lá em casa”.



Elizeth gravou Paulinho da Viola em 1965


Verdadeira diva da música popular brasileira e referência para cantoras como Maria Bethânia e Zélia Duncan, a portelense Elizeth Cardoso iniciou sua carreira impulsionada pelo músico Jacob do Bandolim.
A cantora já fazia sucesso quando gravou o disco que seria considerado marco da Bossa Nova. Lançado em 1958, ‘Canção de Amor Demais’ trazia músicas de Tom Jobim e Vinicius de Moraes e, pela primeira vez, o inconfundível violão de um jovem chamado João Gilberto, em ‘Chega de Saudade’ e ‘Outra Vez’.
O disco ‘Elizeth Sobe o Morro’, de 1965, trouxe a primeira música gravada de Paulinho da Viola, ‘Rosa de Ouro’, parceria com Elton Medeiros e Hermínio Bello de Carvalho. Em 1968, ao lado de Jacob do Bandolim, Zimbo Trio e Época de Ouro, a cantora se apresentou no Teatro João Caetano, num show que entrou para a história da MPB.
Pouco antes de morrer, em 1990, ela se apresentou ao lado de Raphael Rabello, num show que originou o disco ‘Todo Sentimento’’. Durante sua carreira, a cantora, que gravou 40 discos, ganhou inúmeros apelidos como ‘Enluarada’, ‘Magnífica’, ‘Lady do Samba’ e ‘Machado de Assis da Seresta’. Mas nenhum foi tão definitivo quanto aquele dado pelo produtor cultural Haroldo Costa: para ele — e para muitos outros brasileiros — Elizeth sempre será a ‘Divina’.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A voz do samba - O primeiro disco de Alcione

  “Quando eu não puder pisar mais na Avenida/ Quando as minhas pernas não puderem aguentar/ Levar meu corpo junto com meu samba/ O meu anel de bamba/ Entrego a quem mereça usar”. Ao lançar seu primeiro disco, ‘A voz do samba’, em 1975, Alcione viu os versos melancólicos de ‘Não deixe o samba morrer’ (Edson Conceição/ Aloísio Silva) ganharem o país, tornando-se o primeiro sucesso da jovem cantora. Radicada no Rio de Janeiro desde 1967, a maranhense cantava em casas noturnas que marcaram época nas noites cariocas. Nestas apresentações, seu abrangente repertório incluía diferentes gêneros da música brasileira, além de canções francesas, italianas e norte-americanas também presentes no rádio. Enquanto isso, o samba conquistava novos espaços na década de 1970. Em 1974, Clara Nunes viu sua carreira firmar-se nacionalmente com o disco ‘Alvorecer’, do sucesso de ‘Conto de areia’ (Romildo Bastos/ Toninho Nascimento). No mesmo ano, Beth Carvalho obteve seu primeiro êxito como sambista com ‘1...

Galeria do Amor 50 anos – Timóteo fora do armário (ou quase)

  Agnaldo Timóteo lançou o disco ‘Galeria do amor’ em 1975. Em pleno regime militar, o ídolo popular, conhecido por sua voz grandiloquente e seu temperamento explosivo, ousou ao compor e cantar a balada sobre “um lugar de emoções diferentes/ Onde a gente que é gente/ Se entende/ Onde pode se amar livremente”. A canção, que se tornaria um sucesso nacional, foi inspirada na famosa Galeria Alaska, antigo ponto de encontro dos homossexuais na Zona Sul carioca – o que passaria despercebido por boa parte de seu público conservador. O mineiro de Caratinga já havia suscitado a temática gay no disco ‘Obrigado, querida’, de 1967. A romântica ‘Meu grito’, feita por Roberto Carlos para a sua futura mulher, Nice, ganhou outras conotações na voz poderosa de Timóteo. “Ai que vontade de gritar seu nome, bem alto no infinito (...), só falo bem baixinho e não conto pra ninguém/ pra ninguém saber seu nome, eu grito só ‘meu bem'”, canta Agnaldo, que nunca assumiria sua suposta homossexualidade. ...

Joias musicais de Gilberto Gil são reeditadas

               A Universal Music reabre seu baú de preciosidades. Desta vez, a dona do maior acervo musical do país, traz duas joias do cantor, compositor e violonista Gilberto Passos Gil Moreira, recentemente eleito imortal pela Academia Brasileira de Letras. De 1971, o disco londrino, ‘Gilberto Gil’, reaparece em nova edição em vinil, enquanto ‘Refestança’, registro do histórico encontro de Gil e Rita Lee, de 1977, finalmente ganha versão digital.             Gravado durante o exílio do artista baiano em Londres, o quarto LP de estúdio de Gilberto Gil foi produzido por Ralph Mace para o selo Famous e editado no Brasil pela Philips, atual Universal Music. O produtor inglês também trabalhava com Caetano Veloso, que havia lançado seu primeiro disco de exílio no mesmo ano. Contrastando com a melancolia expressada por Caetano, Gil fez um álbum mais equilibrado, dosando as saudades do Brasil...