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Amor clandestino*


Assim que leu o roteiro de ‘Depois de Tudo’, o curta-metragem do jovem diretor Rafael Saar, de apenas 25 anos, que narra o encontro de um casal homossexual da terceira idade, Ney Matogrosso decidiu que voltaria à telona. “Os homossexuais sempre são retratados pela mídia como jovens, bonitos, e bem-sucedidos. O filme mostra o extremo oposto, homens comuns. Só aceitei por isso”, diz o cantor, de 67 anos.
A carreira cinematográfica de Ney começou em 1987 com o filme ‘Sonho de Valsa’, da diretora Ana Carolina. Depois vieram o curta ‘Caramujo Flor’ (1988), de Joel Pizzini, e ‘Diário de Um Mundo Novo’ (2005), filme de Paulo Nascimento. “O cinema não exige tanto tempo quanto o teatro, quero atuar sempre que conseguir conciliar as duas carreiras”, diz o cantor que, em janeiro, traz de volta ao Rio o elogiado show ‘Inclassificáveis’.
No palco, Ney sempre mostrou seu gosto pelas artes cênicas. O jovem matogrossense desembarcou no Rio de Janeiro, em 1966, com o sonho de atuar. “Gosto muito de cinema, sou ator antes de ser cantor”, afirma o intérprete de voz aguda que entrou para a história da música popular brasileira ao liderar o transgressor ‘Secos & Molhados’ — fenômeno musical nos anos 70.Acostumado a quebrar tabus, Ney vê no filme uma forma sutil de se falar de um assunto que a sociedade finge ignorar: o amor clandestino entre homens, inclusive os casados. “Tá assim, ó”, entrega ele.
Ney vê com reservas a aparente mudança de comportamento da sociedade em relação aos homossexuais e acha que os gays estereotipados, mostrados tanto no cinema quanto na TV, contribuem para que o preconceito continue. “Esses personagens caricatos só são interessantes para o sistema. Mostrar um homossexual que fuja deste estereótipo é perigoso: não se pode apontar o dedo para ele”, dispara.
Seu parceiro em cena, o ator Nildo Parente, 72 anos, concorda. “Os gays das novelas são muito caricatos, nunca têm uma relação de macho. ‘América’, de Glória Perez, era legal, mostrava uma história mais séria, sem muita pinta de homossexual”, diz, lembrando de Júnior, personagem de Bruno Gagliasso.
Depois de Tudo’ foi apresentado nos festivais de cinema de Brasília, Fortaleza e em São Paulo, no 16º Mix Brasil — Festival de Cinema da Diversidade Sexual. Nildo arrebatou o prêmio de melhor ator em todos. “O filme está dando o que falar. Ney também foi premiado no Mix”, empolga-se o ator, que lista 66 filmes no currículo. “Quando me disseram que eu tinha sido escolhido como melhor ator, ri muito”, brinca Ney.
Mas o cinema é levado a sério por ele que se prepara para uma nova aventura cinematográfica. A convite da diretora Helena Ignez, Ney será o protagonista do filme ‘Luz nas Trevas — A Revolta de Luz Vermelha’, continuação de ‘O Bandido da Luz Vermelha’ (1968), clássico de Rogério Sganzerla. “A Helena já me disse que não quer preparação, mas gosto desses desafios”.
Também em 2009, o cineasta Joel Pizzini lança seu documentário sobre a vida do cantor: “Coloquei mais de 400 horas de imagens nas mãos dele. Quero estar por perto na hora da edição, afinal é a minha vida. Mas ele tem toda a liberdade”.
Enquanto isso, ‘Depois de Tudo’ continua sua carreira de sucesso nos festivais. Na próxima semana, o curta poderá ser visto na mostra de Belo Horizonte do Mix Brasil.

* Publicado no Jornal O Dia

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