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Áurea Martins, uma senhora cantora



Quatro décadas após o lançamento de seu primeiro disco, ‘O amor em paz’ (1972), como parte da premiação pelo primeiro lugar no programa ‘A grande chance’, em 1969, Áurea Martins chega ao quinto álbum. Editado em CD e DVD pela gravadora Biscoito Fino, ‘Iluminante’ marca o primeiro registro audiovisual da septuagenária cantora escolada nas noites cariocas.
“Áurea Martins tem aquela voz que já não existe mais. Voz densa, uterina, insidiosa e doce. As jovens cantoras de hoje são anasaladas, agudas; são gatas, gatinhas, ou então frenéticas. Não existem mais silêncios, suores e lágrimas. Onde ficou o cantar com densidade das moças de hoje?”, pergunta Fernanda Montenegro na apresentação do DVD.
Reconhecidamente influenciada por Elizeth Cardoso, Áurea traz na garganta a textura aveludada e a emoção que garantem distinção às canções, seja um clássico de Tom Jobim (1927 – 1994) e Vinicius de Moraes (1913 – 1980) (‘Janelas abertas’, 1958) ou uma balada pop de Herbert Vianna e Paula Toller (‘Nada por mim’, 1986). Em todas está o refinamento e a coerência na escolha de repertório que deixaram a grande cantora afastada de uma indústria fonográfica disposta a lhe impor o rótulo de sambista. Sim, Áurea canta samba, gingado, como em ‘Bola no bola’ (Vital Assis/ Hermínio Bello de Carvalho), dolente, como em ‘Me diz, ó Deus’ (Moacyr Luz/ Hermínio Bello de Carvalho), mas sua excelência impede qualquer classificação imponderada – ou preconceituosa.
A atuação em boates e casas de espetáculos confere a Áurea Martins autoridade para pintar as clássicas ‘Ilusão à toa’ (Johnny Alf) e ‘Pensando em ti’ (Herivelto Martins/ David Nasser) com cores intensas, mas nunca exageradas, em um exercício de sofisticação. Sua esmerada interpretação para a impetuosa ‘Cobras e lagartos’ (Suely Costa/ Hermínio Bello de Carvalho) é mais um exemplo.
O roteiro assinado por Hermínio Bello de Carvalho enfileira treze composições do produtor musical, muitas já gravadas por Áurea no CD ‘De ponta cabeça’ (2010), como ‘Acho que é você’ (Paulo Valdez/ Hermínio Bello de Carvalho), ’Sete dias’ (Moacyr Luz/ Hermínio Bello de Carvalho) e a dobradinha ‘Quando o amor acaba/ Só o amor constrói’ (Moacyr Luz/ Hermínio Bello de Carvalho). Felizmente, compositor e cantora primam pela excelência em seus ofícios e mostram que as dores de amores ainda podem render instantes de rara beleza, longe da banalidade impregnada nas programações das rádios. Deste modo, ouvimos bons momentos como ‘Era o fim’ (Fernando Temporão/ Hermínio Bello de Carvalho), ‘Penúltimo desejo’ (Vital Assis/ Hermínio Bello de Carvalho) e ‘Via Crucis’ (Vidal Assis/ Lucas Porto/ Hermínio Bello de Carvalho).
Acompanhada por Denize Rodrigues (sopros), Luis Barcelos (bandolim/ cavaquinho), Lucas Porto (violão de 6 e 7 cordas), Gabriel Geszti (piano/ sanfona), Pedro Aune (baixo), Cassius Theperson (bateria) e Paulo Dias (percussão), Áurea ainda conta com a participação do Terra Trio (Zé Maria da Rocha, piano/ Fernando Costa, contrabaixo e Ricardo Costa, bateria) na faixa que une ‘Ilusão à toa’, Pensando em ti’, ‘Nada por mim’ e ‘Baralho da vida’.
Entre o número a capella, ‘Pela rua’ (J. Ribamar/ Dolores Duran), e a delicadeza de ‘Maninha’, com a participação especial de Chico Buarque’, Áurea Martins exercita sua destreza vocal em ‘Bala com bala’ (João Bosco/ Aldir Blanc), clássico do repertório de Elis Regina (1945 – 1982).
Remando contra a maré dos cada vez mais óbvios e enfadonhos registros ao vivo, ‘Iluminante’ foi acertadamente gravado em estúdio, com todos os silêncios e pausas essenciais a uma grande intérprete.

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