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Mariene de Castro: o canto doce e consciente da "Tabaroinha"



A cantora Mariene de Castro durante entrevista na gravadora Universal Music

Desde que surgiram nos anos 1970, Clara Nunes (1942 – 1983), Alcione e Beth Carvalho formaram o insuperável trio de divas sambistas da música popular brasileira. Apesar de inúmeras tentativas, nenhuma outra cantora do gênero conseguiu projeção nacional semelhante à delas. Com a prematura saída de cena da “mineira guerreira”, o nicho das canções de temática afro-brasileira também ficou vago. Muitas intérpretes fogem do título, dizendo ser limitador. Não é o caso de Mariene de Castro. Lançando seu terceiro disco, ‘Tabaroinha’ (Universal Music), a doce baiana filha de Oxum empunha sem medo a bandeira do samba (“É o sentimento negro que mora em mim, é a minha natureza, uma alma que canta samba com uma saudade, com uma dor que não é da minha idade, não é do meu tempo”) e encara com naturalidade as comparações com Clara (“Ela colocou os orixás no horário nobre da televisão. Por causa dela, de Bethânia e das próprias yalorixás, hoje podemos falar da intolerância religiosa, do respeito às religiões”).
Se seis anos separam ‘Abre caminho’ (2004) de ‘Santo de casa’ (2010), ‘Tabaroinha’ chega abreviando o tempo. “O ritmo prolongado entre um disco e outro foi mais por questões de viabilização do que da produção em si. Tenho um repertório guardado bem grande, tenho muita história pra contar”, anima-se.
O principal fornecedor dessas histórias é o conterrâneo Roque Ferreira, compositor lançado, não por acaso, por Clara Nunes, o qual, ao ver Mariene cantar, sentenciou: “Você é uma sambista, essa bandeira é sua”. A mútua admiração rendeu nove composições de Roque no primeiro disco e outras nove no segundo. “É compositor da minha vida assim como ele diz que eu sou a intérprete da dele”, diz sem traço de falsa modéstia.
Basta ouvir as faixas assinadas por Roque em ‘Tabaroinha’ para entender a devoção do baiano. Mariene derrama doçura no ijexá ‘Ponto de Nanã’ e recria com propriedade ‘Orixá de frente’ (dos versos “Bem que Iaiá queria/ ao menos por um dia/ ser preta também”), gravada por Roberta Sá em ‘Quando o canto é reza’ (2010). A morena toma para si ‘Foguete’, lançada por Maria Bethânia no show ‘Tempo, tempo, tempo, tempo’ (2005). “Vi essa música nascer, coloquei a voz guia para o Roque e o Jota (Velloso) apresentarem à Bethânia”, lembra.
Sinônimo de matuto, caboclo, tabaréu tem especial significado para a menina que ouvia ‘Estrada de Canindé’, clássico de Luiz Gonzaga (1912 – 1989) e de Humberto Teixeira (1915 – 1979), por causa do avô, enquanto a avó era fã de Dalva de Oliveira (1917 – 1972). Outras referências musicais suas desde a infância são Elis Regina (1945 – 1982) e Maria Bethânia. Na adolescência ouvia Marisa Monte. Mas seus ouvidos gostam mesmo do canto do povo, das rezadeiras e lavadeiras de sua terra: “Me encanta a força do canto nato, não estudado, a natureza da voz do jeito que ela nasceu com o sentimento daquela pessoa que canta e te enche os olhos de lágrimas”, se emociona.
Também da meninice veio ‘História pro sinhozinho’, adaptada pelo compositor, Dorival Caymmi (1914 – 2008), para ser o tema de Tia Nastácia na célebre versão televisiva do Sítio do Pica-Pau Amarelo, de Monteiro Lobato. “Quis trazer a minha infância para os meus filhos e para as crianças do Brasil. Tive essa preta que me embalou, que me cuidou e hoje cuida dos meus filhos. Trago essa referência”.
‘Tabaroinha’ marca a aproximação da baiana com os compositores cariocas. Além da parceria de Arlindo Cruz, Babi e Jr. Dom (‘A pureza da flor’), Mariene regravou ‘Roda ciranda’ (Martinho da Vila), lançado por Alcione em dueto com Maria Bethânia no disco ‘Da cor do Brasil’ (1984), e ‘Um ser de luz’, parceria de João Nogueira (1941 – 2000), Paulo César Pinheiro e Mauro Duarte (1930 – 1989), feita em homenagem a Clara. “Talvez seja o momento de lembrar essa cantora que veio com uma missão muito mais do que artística. As pessoas têm essa saudade, por isso gravei”, esclarece. Gravado pela carioquíssimo Zeca Pagodinho, o baiano Nelson Rufino presenteou a cantora com a inédita ‘Amuleto da sorte’.
Assim, entrelaçando pérolas do seu baú, reminiscências da infância e músicas ofertadas, Mariene costurou o repertório do novo álbum. “Tabaroinha traz uma unidade desde a abertura com ‘A pureza da flor’ até ‘Não vou pra casa’ (última faixa), um sentimento tabaréu de trazer singeleza, um tempo diferente para e com a vida”, explica.
A profícua linhagem artística da terra de Caymmi, João Gilberto, Caetano, Gal, Bethânia, Gil, Daniela, Ivete e Margareth não amedronta Mariene. “Lido com naturalidade. São pessoas que reverencio. Esses artistas viveram em um Brasil que proporcionou a eles construir um repertório tão rico. A gente sabe que o Brasil de hoje não permitiria isso, eles não teriam esse alcance, essa popularidade fazendo o tipo de música que fazem”, acredita a moça que ouve pouco rádio atualmente: “A produção musical da Bahia é muito voltada para o axé music, pagode e para essas músicas mais popularescas, um caminho que eu não segui”. Nós torcemos para que o caminho escolhido pela linda baiana continue iluminado como o ouro de Oxum.

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